Notas sobre a tradução brasileira da entrevista de Hannah Arendt a Günter Gaus
Entrevista completa de Hannah Arendt a Günter Gaus é publicada com legendas em português e traduzida direto do alemão
Por Ludmila Franca-Lipke
Transmitida em 1964 pelo canal alemão ZDF, parte da entrevista foi traduzida para o inglês e publicada na coletânea “Essays in Understanding”, sob o título “What remains: the language remains”. No Brasil, a editora Companhia das Letras publicou a coletânea sob o título “Compreender” e traduziu a entrevista da versão em inglês para o português.
Trata-se de um registro valioso da Arendt, onde ela fala de sua vida e esclarece sua atitude perante os críticos, colocando certas polêmicas em torno do então recém-lançado livro “Eichmann em Jerusalém” (1963). Gravada em setembro de 1964, durante a visita de Arendt à Alemanha Ocidental, o programa foi ao ar em outubro do mesmo ano. A tradução para o português se deu a partir do áudio original da entrevista, e não do registro escrito, o que possibilitou acrescentar informações e trechos que não constam das transcrições em alemão e nem na tradução em inglês. Disso resultaram, além de conteúdo extra, diferentes escolhas em relação ao vocabulário, que se afasta um pouco daquele que foi adotado na tradução contida no livro “Compreender”, publicado no Brasil.
Toda tradução é uma interpretação e tal não seria diferente com nossa versão. Este texto, portanto, tem por finalidade explicar as nossas escolhas e esclarecer alguns aspectos, trazidos por Arendt na entrevista, contextualizando-os para melhor entendimento do conteúdo.
Quem foi Günter Gaus
Nascido em 1929, Günter Gaus foi jornalista, diplomata e político. Trabalhou na revista “Der Spielgel” e no jornal “Süddeutsche Zeitung”, onde escrevia sobre política. Gaus começou sua carreira jornalística bem cedo, antes mesmo de concluir os estudos em Germanística, na Universidade de Munique. Como redator-chefe da “Der Spiegel”, ele atuou como apoiador da Ostpolitik, uma política de aproximação entre as Alemanhas, à época divididas. Em 10.04.1963, ele ganhou projeção nacional ao apresentar pela emissora alemã ZDF o programa de entrevistas “Zur Person”, onde ele fazia entrevistas com o intuito de retratar grandes personalidades da política, bem como artistas e intelectuais. Seu programa tornou-se um clássico e, apesar de ter terminado em 1965, até hoje conta com reprises na tv alemã. Em 1973, foi nomeado Secretário de Estado na Alemanha Ocidental, assumindo a função de Representante da República Federal da Alemanha na República Democrática Alemã, função que desempenhou até 1981, promovendo ações de cunho humanitário nas relações entre as duas Alemanhas. Com sua filiação à SPD, em 1976, ele também atuou como Senador para Ciências e Artes. Com a Reunificação da Alemanha, da qual ele foi severo crítico, por entender que faltava uma “unificação interna”, ele se dedicou ao jornalismo mais voltado à esquerda social-democrata do jornal “Der Freitag”, que ele ajudou a fundar, e da revista mensal sobre política “Blätter für deutsche und internationale Politik”.
Gaus faleceu em 2004, estando enterrado no cemitério da Dorotheenstraße, em Berlim. Sua atuação política e jornalística deixaram uma marca indelével na Alemanha, sendo lembrado ainda hoje como grande jornalista pelos seus pares.
Recha Freier, Henrietta Szold e a Alliyah da Juventude
Arendt menciona algumas personalidades da resistência judaica na Alemanha dos ano 1930, que, no texto original não estão citadas. Uma delas é a militante e escritora judia-alemã Recha Freier, responsável por salvar mais de 7.000 crianças e adolescentes antes de durante a Shoá. Filha de judeus ortodoxos, Recha Freier nasceu na Alemanha, em 1892. Confrontada com o antissemitismo já na infância, sendo a única criança judia de sua escola foi objeto de inúmeras perseguições e humilhações por parte de colegas e professores. Formou-se pedagoga em Munique, tendo atuado como professora de alemão, inglês, francês e piano em escolas renomadas. Corajosamente, Freier ficou em Berlim com sua filha, para seguir na resistência, desempenhando seu trabalho de encaminhamento de crianças e adolescentes judeus para a Palestina, enquanto seus filhos e marido foram refugiar-se em Londres. Recha Freier é, juntamente com Eva Michaelis-Stern, fundadora da Alliyah da Juventude, organização judaica cujo escopo era o resgate do número máximo possível de crianças e adolescentes judeus da Alemanha, encaminhando-os em segurança para a Palestina. Como nem sempre atuava de forma legal na obtenção dos papeis para autorização de viagem e imigração dos jovens judeus, Freier foi afastada da chefia da associação e juntou-se a sua família em Londres, em 1938. Ao saber dos acontecimentos da Noite dos Cristais, em 1939, Recha Freier retornou imediatamente para a Alemanha, decida a levar adiante suas atividades com as próprias mãos. Denunciada por propaganda anti-nazista, em 1940, ela conseguiu fugir a tempo para a Palestina, levando consigo mais 120 crianças judias, que ela resgatou na morte certa em campos de concentração nazistas. Seguiu atuante no trabalho de suporte e assistência à crianças judias imigrantes em Israel, fundando a “Agricultural Training Centre for Israeli Children”, uma associação para ajudar crianças pobres, o “Israel Composers Fund” e o “Testimonium Scheme”, este último dedicado à Literatura e Música. Recha Freier morreu em 1984, em Israel.
Personalidade ativa no resgate de judeus da Alemanha Nazista, Henrietta Szold nasceu em Baltimore, em 1860. Assistente social, escritora e pedagoga, Szold é a fundadora da “Hadassah”, a maior organização sionista do mundo. Foi membro da “Vaad Leumi” (a representação oficial dos cidadãos judeus no “Yishuv”, entidade existente antes da fundação do Estado de Israel) e dirigiu a Alliyah da Juventude nos Estados Unidos.
Já no final dos anos 1870, Szold e seu pai eram engajados no acolhimento de judeus do Leste Europeu e da Rússia que chegavam como imigrantes em Baltimore. Com uma atuação marcante nas associações judaicas nos Estado Unidos, o grande desafio de Szold aconteceria na II Guerra Mundial. Já no começo dos anos 1930, ela colaborou no resgate de crianças judias da Europa para a Palestina. Quando a situação dos judeus na Alemanha piorou drasticamente entre os anos de 1933-34, Szold estabelece uma parceria com Recha Freier e torna-se chefe da filial palestina da Alliyah da Juventude, fundada por Freier em Berlim, atuando diretamente no salvamento de milhares de crianças e adolescentes de origem judaica, que se encontravam na Alemanha e em outros países. Szold faleceu em 1945, na cidade de Jerusalém.
Sobre o vocabulário adotado: expressões mais relevantes
Como dito acima, algumas expressões foram traduzidas para o português de forma diferente. O objetivo era tornar o texto mais fiel ao original alemão e preservar o sentido de certas falas. Ao longo da entrevista, Arendt faz uso de expressões idiomáticas alemãs, usadas corriqueiramente pelos alemães. Algumas são próximas de expressões idiomáticas brasileiras, como “segurar o bico” (“die Schnauze halten”), que significa “calar-se” ou “se abster de falar”. Nesse caso, decidiu-se manter a literalidade da expressão, pois, além de ser compreensível ao falante de português, ela preserva o tom usado por Arendt. Já a expressão “olhar suas próprias cartas” (“sich selbst in die Karten gucken”) foi traduzida por “olhar dentro de si mesmo”, privilegiando a compreensão em detrimento da literalidade. O mesmo ocorre com a expressão “ir para a água” (“ins Wasser gehen”), que Arendt usa para ilustrar sua necessidade vital de estudar filosofia na juventude. A expressão tanto pode significar literalmente “ir para a água”, quando alguém se dirige para um banho de mar, por exemplo, ou pode significar “se afogar”, pois remete a afundar na água. Um terceiro sentido, mais metafórico, remete ao suicídio. Optou-se por usar o termo “morrer”, pois a própria Arendt esclarece que ela amava a vida logo após dizer a expressão. Assim, interpretou-se que ela não falava em praticar ativamente um suicídio, mas que seria como um suicídio, se ela fosse privada de ler filosofia, o que remete a uma atitude passiva, ou seja, “morrer", em lugar de “matar-se”.
Merece atenção especial a tradução do termo “Gleichschaltung”, empregado por Arendt ao discorrer sobre a situação daqueles que, de alguma forma, apoiaram o nazismo. Originalmente, o termo foi traduzido como “uniformização”. Preferiu-se nesta nova tradução o uso do termo “alinhamento”, por uma questão, mais uma vez, de sentido. Não é comum, em Língua Portuguesa, dizer que “Fulano se uniformizou com o regime ditatorial”, mas sim “Fulano se alinhou ao regime ditatorial”. Ainda que o termo tenha praticamente o mesmo sentido — de se integrar ao regime —, interpretou-se que o termo “alinhamento” é mais completo e possui mais força neste contexto. A expressão “Gleichschaltung” vem de “gleich” = “igual” ou “mesmo”, e “schalten” = “colocar”, “pôr”. Portanto, em termos mais literais, “sich gleichschalten” pode ser traduzido como “uniformizar-se”, significando a atitude alinhar-se a algo para fins de adesão, daí que optou-se por “alinhar-se”, dada a maior compatibilidade com a forma de se expressar em português.
Situação semelhante ocorre com a tradução da palavra “Wagnis”, que, em termos literais, significa “risco”, mas foi traduzido como “aventura”, por uma questão de estilo. “Aventurar-se” soa mais profundo que o mero “arriscar-se”, com uma faceta mais positiva e profunda que o mero “risco”, geralmente associado a situações de caráter mais negativo, sem necessariamente decorrer da escolha do sujeito em arriscar-se. Aventurar-se, ao contrário, é sempre uma ação consciente empreendida por alguém, o que se aproxima melhor da noção de “vida ativa”.
Também a expressão “pathetisch” foi traduzida por “patético”, no sentido de “emocional”, “dramático” e não no sentido de “ridículo”, como muitas vezes se usa.
Por fim, um dado meramente técnico. A “Grüne Grenze” (literalmente “fronteira verde”) é como se refere à zona de fronteira com menos vigilância, através da qual, por conseguinte, é mais fácil realizar fugas. Achamos importante acrescentar o termo, pois ele ilustra os percalços de uma fuga ilegal, tal qual a realizada por Arendt, seu então futuro marido Heinrich Blücher e tantos outros judeus, comunistas, ciganos e dissidentes do nazismo durante o III Reich.
Com a publicação desta versão com legendas em português, espera-se ampliar o acesso ao legado arendtiano no Brasil, permitindo que mais pessoas possam conhecer as ideias de uma das maiores pensadoras do século XX.